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Treinamento para Prevenir Lesões nos Isquiotibiais

Por Marcus Lima em 13 de maio de 2014

Desta vez, trazemos um artigo falando sobre um problema muito comum que enfrentamos, quer trabalhemos com exercícios, quer sejamos atletas ou simples praticantes de esportes por recreação: As lesões musculares na região posterior da coxa.

O autor explica bem a sua abordagem no tratamento ou na redução do risco deste tipo de lesão. O autor, Kevin Carr, é prestador de serviço no centro de treinamento de Mike Boyle em Boston e também um dos donos da “Movement as Medicine”, vale a pena uma espiada no site dos caras, tem muitos artigos interessantes.

Ao final acessem a versão em vídeo que ilustra os principais pontos do artigo.

Espero que gostem.
Grande abraço.

 

Treinamento Preventivo de Lesões nos Isquiotibiais

Kevin Carr

“De todas as lesões relacionadas à marcha, estiramentos nos isquiotibiais tem a maior taxa de recidiva, com mais de 1/3 dos atletas lesionados sofrendo uma nova lesão nas primeiras semanas que se seguem ao seu retorno à prática esportiva” – Tom Michaud (4).

Estatisticamente, os estiramentos na parte posterior da coxa (isquiotibiais) são uma das lesões de tecidos moles mais comuns em todos os esportes. Estranhamente, eu raramente vi estiramentos de isquiotibiais em nossos atletas na MBSC (N.T: MBSC – Mike Boyle Strength and Conditioning. Centro de treinamento do treinador Mike Boyle, baseado em Boston).

Mais interessante ainda para mim, é que este tipo de lesão é frequentemente citada como uma das mais vistas quando se fala em recidiva (N.T: Termo que designa uma nova ocorrência da mesma lesão sofrida anteriormente), algo que também eu raramente vi na prática de acompanhar atletas pós-lesão.

São estas observações que me fazem crer que um treinamento apropriado faz com que as lesões nos isquiotibiais sejam quase que preveníveis.

 

Anatomia dos Isquiotibiais

Este grupo é composto de 4 músculos: Semimembranáceo, Semitendíneo e as cabeças longa e curta do Bíceps Femoral.

O semitendíneo e o semimembranáceo (N.T: Semimembranoso e Semitendinoso, respectivamente, na nomenclatura anatômica antiga) se originam na parte posterior da tuberosidade isquiática, inserindo-se distalmente na parte medial da tíbia e na fáscia poplitea (N.T: O semimembranáceo se insere na superfície posterior-medial do côndilo medial da tíbia e o semitendíneo um pouco mais abaixo, na superfície medial anterior superior da tíbia).

O bíceps femoral é dividido em cabeças longa e curta, tendo diferentes inserções e fibras em diferentes direções. A cabeça longa tem a origem proximal no parte lateral-posterior da tuberosidade isquiática e ligamento sacrotuberoso, enquanto que a cabeça curta se origina na linha áspera e crista supracondilar lateral do fêmur. Ambos se misturam, se inserindo distalmente no processo estilóide da fíbula e côndilo lateral da tíbia, correndo diretamente no ligamento colateral lateral do joelho.

 

Função dos Isquiotibiais

É importante entender as várias funções deste grupo de músculos no ciclo da marcha para construir uma reabilitação focada, ou um plano preventivo.

Apesar de muitos livros dizerem que a função primária dos isquiotibiais é a de flexores concêntricos do joelho, esta descrição não descreve de maneira acurada a sua função durante a locomoção. Na realidade, a flexão do joelho durante a fase do balanço na marcha é primariamente um movimento passivo, resultante da dinâmica intersegmental e contração dos gastrocnêmios (¹).

Funcionalmente, os ísquios agem como estabilizadores excêntricos do joelho e da articulação sacroilíaca, e como sinergistas concêntricos de extensão do quadril (N.T: Na marcha a extensão do quadril é auxiliada, e muito, pelo balanço da perna oposta).

Primariamente, os músculos semitendíneo e o semimembranáceo agem como estabilizadores excêntricos do joelho durante a porção inicial da fase de apoio na marcha, fazendo uma co-ativação para limitar uma translação anterior da tíbia, juntamente com o músculo poplíteo e o ligamento cruzado anterior (N.T: trocando em miúdos, eles contraem para dar uma força na estabilização do joelho, ajudando a impedir que a tíbia desloque para frente a cada vez que o pé atinge o solo, seja caminhando, correndo, ou aterrissando de um salto). Além disso, eles também agem como sinergistas, assistindo os glúteos na extensão do quadril.

O bíceps femoral serve como um importante desacelerador excêntrico da extensão do joelho durante a fase de balanço da marcha (N.T: E também, a cabeça longa, provavelmente, como desacelerador da flexão do quadril na fase de balanço da marcha). Além disso, por causa da sua inserção na tuberosidade isquiática, o bíceps femoral ajuda a estabilizar a articulação sacroilíaca através de uma contração isométrica durante o contato do pé com o solo.

 

 Mecânica de um Estiramento dos Isquiotibiais

O músculo mais comumente lesionado do grupo é o bíceps femoral, representando 53% de todas as lesões dos ísquios (²). O estiramento clássico, aquele que ocorre enquanto se está dando um sprint, é frequentemente o do bíceps femoral, enquanto que o estiramento ocorrido durante um movimento balístico em que o músculo alonga além da conta, afeta de maneira mais frequente o semitendíneo e o semimembranáceo.

Na minha prática profissional, eu descobri que quase sempre existem algumas variáveis que estão por trás de qualquer lesão aguda não causada por trauma.

Aqui estão os 3 maiores fatores que descobri levarem a lesões de estiramento nos isquiotibiais:

 

1) Posicionamento Pélvico

Assim como em muitas destas lesões (N.T: referindo-se as lesões agudas não causadas por trauma), o mau posicionamento pélvico, especificamente a inclinação anterior da  pelve (N.T: anteversão pélvica) é o coração do problema. Muitos estudos têm citado a anteversão pélvica como um “fator de risco modificável” nos estiramentos de isquiotibiais (³). Vamos considerar por um momento os efeitos da inclinação anterior pélvica nos músculos do quadril e do core.

A função mais importante dos ísquios pode ser o controle postural no plano sagital. A estratégia natural para estabilização pélvica, tem os isquiotibiais trabalhando em conjunto com o diafragma, oblíquos e glúteos para manter de maneira efetiva a pelve neutra.

Quando existe a inclinação anterior da pelve, a rotação superior da tuberosidade isquiática causa mudanças na relação comprimento-tensão dos músculos ao redor da pelve. A inibição dos oblíquos, glúteos e do diafragma, coloca uma demanda excêntrica aumentada no grupo dos isquiotibiais para manter o posicionamento neutro da pelve.

A sensação de carga excêntrica crônica (N.T: É aquela sensação de que se está sempre encurtado) fará com que os indivíduos que possuam uma pelve anteriorizada reclamem de ter “encurtamento na parte posterior da coxa”, quando na realidade, estes indivíduos têm ísquios que estão “travados em alongamento” já que estes músculos estão sendo alongados além da conta e inibidos.

 

2) Inibição dos Extensores Primários do Quadril

Fraqueza e inibição do glúteo máximo, frequentemente irá resultar em alterações nos padrões de recrutamento muscular, fazendo com que os isquiotibiais se tornem os músculos dominantes na extensão do quadril. Esta dominância sinergística aumenta muito a demanda concêntrica sobre os isquiotibiais, deixando-os extremamente suscetíveis a lesões por esforço repetitivo.
(N.T: Além da já citada demanda concêntrica aumentada, significando que os ísquios têm de ficar fazendo um trabalho que não é o seu, eles deveriam ser os ajudantes e não responsáveis principais. Existe a questão de que a alavanca dos isquiotibiais para a extensão do quadril não é a ideal, sendo mais um fator contribuinte).

 

 3) Pouca Força Excêntrica dos Ísquios

 Muitos programas de treinamento, têm um foco puramente na força concêntrica dos isquiotibiais enquanto negligenciam o desenvolvimento de força excêntrica. Enquanto que força concêntrica é importante para a produção de força, o desenvolvimento de força excêntrica é crítico para a absorção de forças (N.T: Também de maximizar a produção de força concêntrica através do mecanismo do armazenamento de energia potencial elástica e seu posterior uso, aumentando a eficiência da execução de qualquer tarefa).

A maioria das lesões de não-contato dos tecidos moles, irão ocorrer como resultado da falha do tendão durante a porção excêntrica da contração. Durante um sprint, existe uma demanda excêntrica extrema nos ísquios para estabilizar o joelho e a pelve. A falha em preparar adequadamente estes músculos para resistir a altos níveis deste stress excêntrico, irá aumentar as chances de um estiramento.

As demandas aumentadas colocadas nos isquiotibiais como resultado das disfunções citadas, irão, em última análise, levar à lesões por sobrecarga e/ou há uma ruptura do tendão. As exigências concêntricas e excêntricas causarão frequentemente uma sobrecarga do tendão durante a fase de contato do calcanhar no chão na marcha.

Durante um sprint, o grupo dos isquiotibiais é mais ativo nos momentos imediatamente antes e depois do contato do calcanhar no solo. O bíceps femoral passa por seus mais altos níveis de stress excêntrico durante os últimos 20% da fase de balanço da marcha, afim de desacelerar a extensão do joelho. Seguido a isso, o grupo dos isquiotibiais passa por uma transição entre a contração excêntrica para uma breve contração isométrica no contato do calcanhar com o solo, antes de contrair concentricamente para assistir os glúteos na extensão do quadril.

Essa crítica transição entre a fase terminal de balanço e o início da fase de apoio é onde muitas das lesões musculares na região posterior da coxa irão ocorrer (4).

 

Intervenções Práticas

Restauração do Alinhamento Pélvico

O primeiro passo no protocolo para prevenir e reabilitar lesões nos ísquios, deveria ser restaurar o alinhamento pélvico do indivíduo. Na ordem das intervenções deveríamos sempre restaurar o alinhamento pélvico e a respiração, já que disfunções neste nível irão limitar o sucesso lá adiante.

O exercício que normalmente uso é o de respiração 90/90 mostrado abaixo (N.T: O nome provavelmente venha da posição de 90º de angulação do joelho e do quadril). Este exercício treina a retroversão da pelve através da facilitação dos oblíquos e do diafragma. Uma vez que é demonstrado competência neste nível, eu irei progredir para posições mais desafiadores na sequência desenvolvimental.

(N.T: Referindo-se às posições e posturais dentro de uma sequência que obedece o nosso desenvolvimento motor, creio que muitos chamam estas ideias de cinesiologia desenvolvimental. Ela forma um dos princípios de uma filosofia vinda da República Checa, que nós da Fortius temos trabalhado nos últimos anos, chamada de DNS – Dynamic Neuromuscular Stabilization).

Fortalecimento Funcional dos Isquiotibiais

Quando prescrever exercícios de força, tendo em mente a reabilitação e a prevenção de lesões na região posterior da coxa, é importante considerar os mecanismos que frequentemente levam às lesões. Como mencionado anteriormente, a combinação de sobrecarga excêntrica e fraqueza da musculatura glútea, frequentemente desempenharão um papel durante um estiramento na parte posterior da coxa. Com isto em mente, o melhor é prescrever exercícios que treinarão ambas qualidades.

Aqui estão os meus exercícios para o fortalecimento dos isquiotibiais:

Levantamento Terra Unilateral

Gosto muito deste exercício porque ele me fornece uma verdadeira força funcional para a cadeia posterior. A própria natureza do exercício, condiciona o padrão terminal da elevação da perna ativa (N.T: Refere-se aqui a um dos 7 testes do FMS, a elevação da perna ativa, tradução livre do nome em inglês: Active Straight Leg Raise). Fortalecendo as qualidades de movimento que analisamos no FMS (N.T: Functional Movement Screen, ferramenta de análise de movimentos já bem conhecida dos profissionais do exercício).

Elevação da Perna (Active straight leg raise)

Adicionalmente, a posição semi estendida da perna no exercício faz um grande trabalho imitando a posição articular do quadril e joelho durante o contato inicial do pé no solo na marcha, emprestando-lhe alguma especificidade para a corrida. Instrua os atletas a desempenharem lentamente a porção excêntrica do exercício, para condicionar os isquiotibiais, enquanto desempenham a porção concêntrica de maneira explosiva, a fim de condicionar os glúteos.

 

Progressão da Flexão de Joelho no Slide
(N.T: Do original em inglês slideboard leg curl)

O valor destes exercícios não pode ser subestimado na prevenção e reabilitação dos ísquios, por causa da sua habilidade de treinar a co-contração apropriada dos glúteos e dos isquiotibiais. Para desempenhar corretamente estes exercícios, se requer que o atleta possa manter a extensão do quadril através dos glúteos (Falha em manter a extensão do quadril através do exercício inteiro, irá diminuir muito o valor do exercício).

Os treinadores deveriam se focar inicialmente em uma ênfase excêntrica ao programarem este exercício, já que isto irá condicionar os isquiotibiais para o stress que irão enfrentar e permitir moldar a cicatriz tecidual, se for prescrito para reabilitação. Adicionalmente, descobri que iniciar com uma variação excêntrica do exercício, irá evitar a cãibra nos ísquios e permitir uma adaptação rápida em atletas que estão destreinados neste movimento.

 

Flexão bilateral excêntrica de joelho no slide

Flexão bilateral de joelho no slide

Flexão unilateral excêntrica de joelho no slide

Flexão unilateral de joelho no slide

 

Integração de Movimentos

Na transição do Treinamento Geral para um Treino Específico de determinada modalidade esportiva, é importante preencher a lacuna entre a sala de treinamento de força e a prática esportiva, ensinando uma boa mecânica de corrida (N.T: Ou de aceleração). Especificamente treinando a parte de trás da mecânica que é necessária para uma fase de empurrar o solo na aceleração. A mecânica ineficiente da aceleração irá frequentemente levar a um excesso de stress para a propulsão.

Frequentemente, constato que atletas estirarão os ísquios enquanto dão passadas mais longas ou tentam “puxar o solo” atrás de si, ao invés de “empurrar o solo”
(N.T: A propulsão eficiente é uma ação de empurrar, pisar como se fosse “furar o chão” atrás de si . Atrás porque na aceleração o tronco estará mais a frente que a perna que está atrás empurrando, como bem mostra a imagem dos velocistas acima. É aquela perna “empurrando o chão” que impulsionará o atleta a frente. Claro que existem outros componentes da mecânica da aceleração, mas o autor do texto está pondo um foco nesta parte do quebra cabeças no momento).

Quando os atletas tentam alcançar e depois puxar o solo para trás (N.T: Referindo-se a dar uma passada mais longa e tentar alcançar o solo mais a frente, abrindo mais a passada, para depois tentar puxar o solo para trás. Seria uma ação mais ou menos como numa escalada, se é que posso fazer essa analogia para facilitar o entendimento, em que se tenta estender o braço lá no alto para agarrar uma saliência na rocha e depois puxar-se), ocasionam uma sobrecarga nos ísquios, já que os músculos precisam tentar realizar 3 demandas ao mesmo tempo:

  1. Concentricamente flexionar o joelho.
  2. Assistir na extensão do quadril.
  3. Isometricamente estabilizar a articulação sacroilíaca.

Essa sobrecarga é que no final das contas vai levar à falha tecidual. Com isto em mente, eu irei passar bastante tempo ensinando uma boa mecânica de aceleração aos meus atletas através dos exercícios que se seguem.

 

Skips e Exercícios de Aceleração

O ensino dos skips, irá estabelecer a fundação para desenvolver uma boa parte de trás da mecânica para a aceleração. Uma vez que a técnica é dominada, eu uso o exercício inclina-cai-corre (N.T: Tradução mais literal do nome em inglês: lean-fall-run) e sprints de 10 jardas (N.T: Aproximadamente 9 metros) para iniciar a treinar a subida do joelho à frente (N.T: A parte da frente da mecânica da aceleração, ele se refere a subida agressiva do joelho, que está a frente do tronco, como visto na figura dos velocistas) e a extensão do quadril.

Estes são grandes exercícios que ajudam os atletas a entenderem a separação dos quadris e como efetivamente transferir essa força no solo (N.T: Os quadris irão agir como um pistão nesta mecânica da aceleração, enquanto um sobe de maneira agressiva o outro desce empurrando o solo atrás do atleta).

Skip

(O atleta mostrado no vídeo acima é extremamente lento, a despeito de sua ótima mecânica de aceleração)

 

Empurrar e Puxar o Trenó

Empurrar o trenó (N.T: Sled em inglês, termo que usamos bastante por aqui também) é a melhor ferramenta para reforçar a separação dos quadris e preencher a lacuna entre o treino de força e a aceleração. Embora empurrar o trenó com uma carga pesada seja desencorajado por muitos treinadores de atletismo, sinto que não existe uma ferramenta mais valiosa para um atleta do que um trenó com pesos.


Versão em vídeo:

Bibliografia:

(¹) Neumann, Donald A. “Lower Extremity.” Kinesiology of the Musculoskeletal System: Foundations for Physical Rehabilitation. St. Louis: Mosby, 2002. 550. Print.

(²) Woods, C., et al. “The Football Association Medical Research Programme: an audit of injuries in professional football—analysis of hamstring injuries.” British Journal of Sports Medicine 38.1 (2004): 36-41.

(³) Brooks, John HM, et al. “Incidence, risk, and prevention of hamstring muscle injuries in professional rugby union.” The American journal of sports medicine 34.8 (2006): 1297-1306.

(4) Michaud, Thomas C. Human Locomotion: The Conservative Management of Gait-related Disorders. Newton, MA: Newton Biomechanics, 2011.


Aos que quiserem ler o artigo original, aí vai o link: Training to Prevent Hamstring Injuries.

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